DE QUANDO HAVIA SOMBRA DAS AMENDOEIRAS

Ousarme Citoaian
Improvisar diante de microfones (com ou sem câmeras) é coisa que profissionais prudentes se recusam a fazer. Um bom script ou um simplório roteiro contendo o essencial,é ajuda muitas vezes capaz de nos tirar de situações verdadeiramente angustiantes. Em tempos que já longe vão o radialista Robert Assef, fundador da Rádio Baiana de Ilhéus, apresentava um programa semanal, da pracinha Dom Eduardo. No programa, chamado À Sombra das Amendoeiras, o apresentador opinava sobre futebol, política, moda, economia, cinema, enfim, tudo que lhe desse na telha. Abre parênteses para dizer que, anos depois, o prefeito Ariston Cardoso cortou todas as amendoeiras daquela área, substituindo-as por cimento armado.

ROBERTO ASSEF E O NAVIO QUE ENCALHOU!

O bom Assef, com a eloquência costumeira, discorria sobre um acidente que o precário porto de Ilhéus (na foto de Mendonça) registrara na noite anterior. Lá pras tantas, disse que o navio estava próximo ao ancoradouro, já perto de atracar, “quando…” – “quando…” (coçou a cabeça), “quando o navio…” (e nada de lembrar a palavra). Depois de várias tentativas (deixando seus ouvintes nervosíssimos), desistiu. Passou a falar da importância dos judeus, “que ainda vão dominar o mundo”, mudou para a influência do guarda-chuva  na vida dos faraós, aplaudiu a minissaia e, cerca de 45 minutos depois, declarou, feliz, para espanto de quem não acompanhara sua angústia com a questão do porto: “Encalhou! O navio encalhou!”

A RAINHA ELIZABETH E O MEMBRO DE FORA

O jornalista Levi Vasconcelos (em sua festejada coluna Tempo Presente, n´A Tarde) conta esta, com o radialista Newton Moura Costa, grife do rádio baiano da época. Ao descrever a visita da rainha Elizabeth II a Salvador (1968), disse Newton que ao lado direito dela vinha o governador Luís Viana Filho; atrás, o príncipe Philip; “e do lado esquerdo está…” Parou, suou, perguntou (por gestos) aos colegas mais próximos, ninguém lhe disse quem era o homem à esquerda da rainha da Inglaterra. Transmitindo ao vivo para a Rádio Sociedade, Newton improvisou: “Ao lado esquerdo de Sua Majestade está um membro de fora”. O membro de fora era o ministro das Relações Exteriores, Magalhães… Pinto.

CASO PESSOAL: ESGOTOU-SE-ME A PACIÊNCIA

Em matéria sobre divergência entre a Prefeitura de Salvador e o Ministério Público, o mais antigo  matutino da capital baiana grafa, sem cerimônia: “O prazo dado pelo MPesgotou”. Não entro no mérito, pois acredito que o prazo, de fato, esgotou-se (“Se deu n´A Tarde, é verdade”,  já dizia o famoso bordão). O que se esgota é a paciência do leitor mais exigente, aquele que estudou regência verbal na escola. Vou aos dicionários e confirmo: esgotar, no sentido empregado pelo redator, é verbo pronominal – ao menos para os clássicos, também chamados de bons autores. Como se vê, aos maus, tudo; aos bons, a norma.

OS PRAZOS NÃO ESGOTAM, APENAS TERMINAM

É o hábito de usar sinônimos sem observar as diferentes regências dos verbos. Recentemente falamos de ver/assistir: a gente vê filme, mas assiste ao filme. Na presente situação, o embrulho foi com esgotar/terminar: o prazo termina, mas o prazo se esgota. O Michaelis tem ótimos exemplos das diversas regências deste verbo:Esgotou o cofre (algum prefeito?), Esgotou-se mais uma edição (diz o feliz dono do jornal), Esgotamos todos os recursos (lamenta-se o advogado), Esgotaram-me a paciência (é meu caso, sem tirar nem pôr), Esgotei o assunto (também me serve!)… Não O prazo esgotou (a escolha é esgotou-se).

SEM LEITURA, NÃO HÁ ESCRITA ACEITÁVEL

Repito de novo (assim mesmo, pois já repeti antes) não haver sensatez em adotar sem restrições filigranas inventadas na mídia, criações de redatores imberbes. Como isto aqui é só conversa de amigos, não aula de gramática, mantemos um repto aos devotos de São Judas Tadeu (santo padroeiro de causas perdidas): tragam-me o abono de algum autor de renome para essa forma do verbo esgotar que eu retiro tudo o que disse. Digo ainda, a quem interessar possa, que estas observações se baseiam em velhas lições bebidas em sala de aula, alguma experiência em fazer textos e, naturalmente, na leitura dos que sabem escrever.
COMENTE! » |

A CANÇÃO “BATENDO PAPO” COM ELA MESMA

Recurso muito usado na MPB, as “conversas musicais” (texto poético em que existe diálogo), produziram páginas fundamentais do nosso cancioneiro. Vasculho a memória e encontro Noite dos Mascarados e Sem Fantasia (Chico Buarque),Sinal Fechado (Paulinho da Viola), Teresa da Praia(Billy Blanco-Tom Jobim) e Samba em Prelúdio(Vinícius-Baden Powell). Não incluí duas composições de Lupicínio Rodrigues (Sozinha e Ela Disse-me Assim), por considerar que elas não contêm um diálogo “direto” (os leitores, é claro, lembrarão de outras). E deixei para o fim a minha preferida:Amigo é Pra Essas Coisas (Aldir Blanc-Sílvio da Silva Jr.).

UMA “CONVERSA” ENTRE PRIMAS E BORDÕES

A canção (segundo lugar, em 1970, no Festival da Tupi/Rio) é das mais conhecidas letras de Aldir Blanc (foto), que depois seria popularizado, já com seu parceiro João Bosco, na voz de Elis Regina. De Sílvio da Silva Jr. é a única divulgada. Entre as composições deste tipo, nenhuma delas atingiu a alta qualidade de Amigo é Pra Essas Coisas.  As outras têm o diálogo apenas na letra;Amigos…  o tem também na melodia. Até quem não é músico (eu, por exemplo) percebe que as primas “perguntam” e os bordões  “respondem”: as duas primeiras notas, tristes, dizemSalve! e as outras respondem (quatro notas) em tom animado, Como é que vai?

“TRISTE, SOFRIDO, POBRE E ABANDONADO”

É o clima ao longo de toda a canção: um sujeito tristonho, sofrido, tangido por vendavais de pobreza, desemprego, abandono (“Rosa acabou comigo…”), sobrevivendo de bicos (“Eu vivo ao deus-dará”, confessa com amargura), sem perspectivas. A pergunta “E amanhã?” tem como resposta “Que bom se eu morresse…” – atingido o último degrau da desesperança. Aldir valeu-se de uma forma bem coloquial, com expressões de gíria (uma novidade para a época), fazendo da letra um típico papo de dois velhos conhecidos, um bem sucedido, outro na pior. Aqui, a interpretação de dois dos maiores cantores da MPB, João Nogueira e Emílio Santiago.